Ouvi ontem que quando somos
crianças estamos a "quase todo instante em estado de deslumbramento, isso
se dá por tudo mostrar-se novo. Nosso nível crítico é ausente, e somos surpreendidos
a todo o momento”. Conforme amadurecemos ficamos resistentes, críticos demais e
chatos demais. E aquele deslumbramento que outrora tínhamos torna-se raro,
quando não, ausente. Enfim, recentemente fui tomado por um deslumbramento na
leitura de um antropólogo francês, René Girard. Surpreendeu-me sua escrita precisa
e análise tão contundente, no que tange ao comportamento dos indivíduos. A obra
Mensonge romantique et Vérité
romanesque (1961), traduzida aqui no Brasil pela editora: É Realizações como: A mentira romântica e
a verdade romanesca (2009), embora seja um estudo bibliográfico e sistemático
da concepção do romance, o livro apropria-se da esfera do behaviorismo e reverbera para
campo social, e denuncia-nos o esquema da inveja e da rivalidade nos outros e
em nós.
Em Muito barulho por Nada de Shakespeare, Benedick
e Beatrice apaixonam-se por sugestão dos amigos, em Romeu e Julieta, o amor de Romeu nasce a
partir da proposta de seu primo Benvólio. O ciúme excessivo de Othelo surge das
insinuações de Iago. Na novela Dom Quixote de Cervantes o amor do herói a
cavalaria parte das leituras do livro de Amadis de Gaula. No Dom Casmurro,
Bentinho só irá sentir afeto por Capitu, somente depois que ouve a conversa de
José Dias afirmando que eles estão apaixonados, sugestão mais uma vez. “O
desejo humano é fruto da presença de um mediador, vale dizer, o desejo é sempre
mimético (GIRARD, 2009, p.17) ”. Na leitura dos clássicos universais como
Homero, Flaubert, Prost, Stendhal, Dostoiévski e entre
outros, Girard percebeu uma repetição no esquema do romance, desejos que partem
de outros e assumem a vontade do herói e/ou protagonista. A ideia de mimésis nasce na poética de Aristóteles, e diz respeito a imitação, assim como
os outros animais, o homem é um animal mimético. Desde crianças somos
imitadores natos. Imitamos nossos pais, amigos, ídolos. E vez ou outras precisamos
de um mediador para apontar-nos um caminho. Sobretudo, no que tange a coisas do
coração. E por vezes acatamos, quase sempre acatamos. Ora, nosso desejo está
atrelado a mediação. “ (...) como aprendo a comportar-me a partir
da reprodução de comportamentos já existentes, sou levado, consciente ou
inconscientemente, a adotar modelos e a segui-los como se fossem expressões do meu desejo autônomo.
(Girard, 2009, p.18) ”.
Contudo, há
uma zona sombria no processo mimético. Se assumo o desejo de A, ao desejar B, faço de A meu rival,
monta-se assim a triangularidade do desejo, camuflado nos romances como triangulo amoroso. Na obra O conde de
Monte Cristo (1846) de Alexandre Dumas. Edmond Dantés é preso
injustamente por conta de um complô que envolve três pessoas, dentro as tais Fernand
Mondego, que quer Mercedés a noiva de Dantés. Ora, se A é um obstáculo para se alcançar B, cabe a C inutiliza-lo. E embora
pareça alegórico demais, é mais comum do que parece, é como dizem “no amor e na
guerra vale tudo”. Não obstante, o desejo
mimético não se resume apenas ao amor, mas a tudo, desde profissões, perfis em
redes sociais, escolha da escola dos filhos a objetos de consumo. Quando
reconhecemos que nosso próximo tem aquilo que queremos (propositalmente ou não apontado
por ele), vemos nele um rival. E covardemente quando não temos meios ou forças
para alcançar o que ele possui, o detratamos, caluniamos, em nossa rivalidade
mimética.
Girard vai além ao apontar dois
tipos de mediação: externa e interna. A mediação externa está distante do
sujeito mimético, sendo assim, impossível haver um confronto. É muito comum no
campo das artes ou nas profissões, focar um modelo antigo, através de suas obras
(livros, filmes ou músicas) e da influência desse mediador alcançar se desejo. O
modelo serviu como mediador, entretanto, sua posição não mostrou ameaça. Na mediação interna “(...) o modelo
se encontra perigosamente próximo do sujeito mimético: é seu professor; seu
amigo bem-sucedido; seu vizinho cuja mulher cobiçamos. (Girard, 2009, p.19) ” A rivalidade é acentuada na mediação interna.
Na busca de invalidar o rival, o sujeito assume posturas covardes, tentando
alcançar o aniquilamento. Como Saul com Davi, Salieri com Mozart ou
Sainte-Beuve com Victor Hugo. O filósofo Cícero afirmava que a inveja é a amargura que se sofre por
causa da felicidade alheia. Mera consequência mimética!
Nenhum comentário:
Postar um comentário