sexta-feira, 21 de abril de 2017

Girard: Introdução ao querer.

Ouvi ontem que quando somos crianças estamos a "quase todo instante em estado de deslumbramento, isso se dá por tudo mostrar-se novo. Nosso nível crítico é ausente, e somos surpreendidos a todo o momento”. Conforme amadurecemos ficamos resistentes, críticos demais e chatos demais. E aquele deslumbramento que outrora tínhamos torna-se raro, quando não, ausente. Enfim, recentemente fui tomado por um deslumbramento na leitura de um antropólogo francês, René Girard. Surpreendeu-me sua escrita precisa e análise tão contundente, no que tange ao comportamento dos indivíduos. A obra Mensonge romantique et Vérité romanesque (1961), traduzida aqui no Brasil pela editora:  É Realizações como: A mentira romântica e a verdade romanesca (2009), embora seja um estudo bibliográfico e sistemático da concepção do romance, o livro apropria-se da esfera do behaviorismo e reverbera para campo social, e denuncia-nos o esquema da inveja e da rivalidade nos outros e em nós.
Em Muito barulho por Nada de Shakespeare, Benedick e Beatrice apaixonam-se por sugestão dos amigos, em Romeu e Julieta, o amor de Romeu nasce a partir da proposta de seu primo Benvólio. O ciúme excessivo de Othelo surge das insinuações de Iago. Na novela Dom Quixote de Cervantes o amor do herói a cavalaria parte das leituras do livro de Amadis de Gaula. No Dom Casmurro, Bentinho só irá sentir afeto por Capitu, somente depois que ouve a conversa de José Dias afirmando que eles estão apaixonados, sugestão mais uma vez. “O desejo humano é fruto da presença de um mediador, vale dizer, o desejo é sempre mimético (GIRARD, 2009, p.17) ”. Na leitura dos clássicos universais como Homero, Flaubert, Prost, Stendhal, Dostoiévski e entre outros, Girard percebeu uma repetição no esquema do romance, desejos que partem de outros e assumem a vontade do herói e/ou protagonista.  A ideia de mimésis nasce na poética de Aristóteles, e diz respeito a imitação, assim como os outros animais, o homem é um animal mimético. Desde crianças somos imitadores natos. Imitamos nossos pais, amigos, ídolos. E vez ou outras precisamos de um mediador para apontar-nos um caminho. Sobretudo, no que tange a coisas do coração. E por vezes acatamos, quase sempre acatamos. Ora, nosso desejo está atrelado a mediação. “ (...) como aprendo a comportar-me a partir da reprodução de comportamentos já existentes, sou levado, consciente ou inconscientemente, a adotar modelos e a segui-los como se fossem expressões do meu desejo autônomo. (Girard, 2009, p.18) ”.
Contudo, há uma zona sombria no processo mimético. Se assumo o desejo de A, ao desejar B, faço de A meu rival, monta-se assim a triangularidade do desejo, camuflado nos romances como triangulo amoroso. Na obra O conde de Monte Cristo (1846) de Alexandre Dumas. Edmond Dantés é preso injustamente por conta de um complô que envolve três pessoas, dentro as tais Fernand Mondego, que quer Mercedés a noiva de Dantés. Ora, se A é um obstáculo para se alcançar B, cabe a C inutiliza-lo.  E embora pareça alegórico demais, é mais comum do que parece, é como dizem “no amor e na guerra vale tudo”.  Não obstante, o desejo mimético não se resume apenas ao amor, mas a tudo, desde profissões, perfis em redes sociais, escolha da escola dos filhos a objetos de consumo. Quando reconhecemos que nosso próximo tem aquilo que queremos (propositalmente ou não apontado por ele), vemos nele um rival. E covardemente quando não temos meios ou forças para alcançar o que ele possui, o detratamos, caluniamos, em nossa rivalidade mimética.  
Girard vai além ao apontar dois tipos de mediação: externa e interna. A mediação externa está distante do sujeito mimético, sendo assim, impossível haver um confronto. É muito comum no campo das artes ou nas profissões, focar um modelo antigo, através de suas obras (livros, filmes ou músicas) e da influência desse mediador alcançar se desejo. O modelo serviu como mediador, entretanto, sua posição não mostrou ameaça.  Na mediação interna “(...) o modelo se encontra perigosamente próximo do sujeito mimético: é seu professor; seu amigo bem-sucedido; seu vizinho cuja mulher cobiçamos. (Girard, 2009, p.19) ”  A rivalidade é acentuada na mediação interna. Na busca de invalidar o rival, o sujeito assume posturas covardes, tentando alcançar o aniquilamento. Como Saul com Davi, Salieri com Mozart ou Sainte-Beuve com Victor Hugo. O filósofo Cícero afirmava que a inveja é a amargura que se sofre por causa da felicidade alheia. Mera consequência mimética!

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